Este não é um texto sobre política, mas a situação que estamos passando pode nos fazer pensar sobre o papel da liderança em um mundo em crise.
O que testemunhamos nas últimas semanas no nosso país é, sem dúvida, o ápice de uma crise sem adjetivo e sem precedentes para todos nós na nossa história recente. Os últimos acontecimentos de depredação do patrimônio público brasileiro escancara a nossa fragilidade como sociedade, como modelo civilizatório que, infelizmente, não conseguimos ainda construir e liderar.
O que vimos marca uma alteração súbita nas estruturas institucionais e democráticas que continuam em desenvolvimento no Brasil, em ciclos curtos recorrentes de avanços e retrocessos, retrocessos e avanços.
Mas como falamos, a política não será o nosso tema nesse texto. O nosso ponto é contribuir para desenvolver a habilidade de liderança - capacidade que todos nós temos e que independe de cargos, de posição ou de hierarquia. Porém, é impensável para nós deixar de considerar que esta crise trará impactos e repercussões de todas as naturezas, para o país como um todo, passando inclusive pelas dinâmicas da capacidade de liderança individual e coletiva.
Portanto, vemos uma relação clara entre crise e liderança.
A palavra crise tem uma origem que remete ao grego *krisis*, cujo alcance tem no verbo grego *krínein* o sentido de “construção da crítica” “discernimento”, “tomada de decisão”, “ação de distinguir”, “ação de decisão”. O que caracteriza a liderança senão essa capacidade de discernimento, de senso crítico e tomada de decisão?
Dois pontos para uma reflexão:
1️⃣ Se uma crise gera a tomada de decisão, então a ideia de oportunidade também envolve a experiência da crise. É na passagem de um momento extremo e difícil que somos testados na nossa capacidade de discernir em um cenário de mudança profunda para aprender, superar e transformar a realidade. Que oportunidades uma crise como essa nos aponta individualmente, você, eu, na nossa experiência existencial? Que oportunidades uma crise como essa nos aponta para, de fato, avançarmos para a maturidade do nosso processo civilizatório?
2️⃣ Diante da barbárie indefensável, diante da complexidade do contexto, e ao sentir os efeitos dessa crise, nos perguntamos onde está o senso de humanidade? Onde se perdeu o senso de civilidade?
Sim, é inevitável perceber que no meio de uma enorme crise como essa é quase impossível permanecer otimista. Mas, por aqui somos otimistas não por teimosia, mas por princípio!
Parece ironia, mas justamente essa semana eu estava mergulhada no livro “Humanidade – Uma História Otimista do Homem”. O autor Rutger Bregman, relata que ele quase teve que pedir desculpas para seus interlocutores para convencê-los de lançar o livro.
Ancorado pela ciência, antropologia, história e a filosofia, ele teve que defender a bondade humana e relatou três alertas que nos tocam muito aqui na cuidadoria, estimulados pelo propósito de contribuir para a transformação individual e coletiva através da liderança que vem de dentro de nós, da nossa humanidade.
Os três alertas de Bregman:
🔵1. Defender a bondade humana é enfrentar o cinismo da nossa sociedade, representado por uma hidra, remetendo aos 12 trabalhos de Hércules da mitologia, quando Hercules enfrenta o mostro mitológico de sete cabeças que gerava duas novas cabeças a cada uma que Hércules decepava. Bregman diz que a cada novo argumento misantrópico que esvaziamos para defender a bondade, duas novas surgirão no lugar.
🔵2. Defender a bondade é tomar uma posição contra o poder vigente. Diz Bregman: “Para os poderosos, qualquer visão esperançosa da natureza humana é uma ameaça direta. Subversiva. Sediciosa. Implica não sermos as feras egoístas que precisam ser domadas, restringidas e regulamentadas. Implica em precisarmos de um novo tipo de liderança. Uma empresa com funcionários intrinsecamente motivados não precisa de gerentes; uma democracia com cidadãos engajados não precisa de políticos de carreira.”
🔵3. Defender a bondade humana é se expor a ridicularizações, a ser chamado de ingênuo, obtuso. Pior, é mais fácil ser cínico.
O que esta crise tem a nos ensinar terão muitas e diferentes perspectivas, visões e opiniões.
No fim, apesar de todo o contexto mostrar o contrário, apesar de sermos taxados de ingênuos, não podemos deixar de confiar na humanidade das pessoas. Quais os líderes que vão ousar a enxegar as oportunidades e continuar a acreditar na bondade da humanidade apesar do tamanho da crise?
A liderança é construída na experiência da interação entre as diferentes humanidades que estão dentro de cada um de nós. Não haverá receita de como fazer, pois é pura experiência, vivida e sentida na pele todos os dias por cada um de nós nos ambientes que nos rodeiam. Podemos observar isso quando vemos que, de alguma forma, (que talvez não seja aquela pela qual passamos no momento) é possível trabalharmos juntos, construirmos valor conjuntamente para aquilo que escolhemos fazer e contribuir.
Em um momento como esse, mais do que nunca, precisamos acreditar, confiar e promover a bondade das pessoas. O momento de crise é sempre uma oportunidade e precisamos de líderes dispostos a enfrentar as crises sem desistir da bondade do ser humano.
O que aconteceu nos serve de alerta, embora tenhamos ignorado tantos alertas...