Era dia 19 de junho de 2015, o relógio marcava 6:15 da manhã quando ouvi o despertador tocar. O inverno se aproximava e a manhã estava gelada em São Paulo.
Ainda com os olhos pesados de sono, levantei da cama, tomei um banho quente, seguido por uma xícara de café e me preparei para mais um dia de trabalho.
Era um dia como outro qualquer, cheguei no trabalho cedinho, abri o meu computador e estava checando os meus e-mails quando de repente uma movimentação estranha começou no andar.
Murmurinhos, pessoas andando de um lado para outro, minha cabeça começou a fazer várias especulações, quando de repente um colega comunicou:
“É isso mesmo, a polícia federal interditou o prédio, ninguém pode entrar nem sair”.
Em dez minutos eles estavam no andar e de forma rude nos orientavam a não mexer em nada e liberar espaço para vasculharem documentos, computadores e papelada.
Me senti invadida e acuada, mais do que isso me senti julgada, a forma como me olhavam transbordava acusação.
Desci para a cafeteria e chagando lá a sensação das pessoas era a mesma: abuso e julgamento. Imediatamente senti meus valores sendo profundamente feridos, como eu poderia fazer parte de uma organização envolvida no centro da corrupção no país.
Aquele dia o presidente da empresa em que eu trabalhava foi preso. Durante aquele ano a situação só piorou, e os cortes de pessoal começaram a acontecer em massa.
A energia de medo dominava o ambiente. Imagina 3.000 pessoas convivendo diariamente, movidas pela apreensão do que iria acontecer e pelo medo de perder o emprego.
As duas necessidades mais básicas de todo ser humano, sobrevivência e segurança, sendo estressadas e colocadas a prova dia após dia.
O desconforto, o mal-estar e a preocupação eram visíveis nas expressões de cada um, mas poucos eram os que se permitiam falar abertamente sobre isso. Naturalmente o sentimento foi sendo negado.
Era nítido que nem mesmo os líderes sabiam o que fazer naquela situação, que informações passar. Ficávamos sabendo dos acontecimentos como todo o resto do país, pela mídia.
Os meses foram se passando e eu me sentia cada vez mais culpada por não conseguir honrar os meus valores, por não conseguir me posicionar, por não ter força para ser integra comigo mesma.
Eu não consegui fazer nada para ajudar as pessoas, para tirarmos as máscaras e falar sobre isso, nos apoiar no sentimento de medo e apreensão. Eu também estava paralisada pelo medo.
Mas no meio da paralisia uma coisa eu consegui fazer: observar. Observando eu percebi que ninguém sabia como lidar com a situação porque nós fomos educados para ser fortes e profissionais.
E nos esquecemos de como é entrar em contato e cuidar dos nossos medos e sombras, não sabemos mais como falar sobre isso, não sabemos nos apoiar e nos acolher na nossa expressão mais humana de vulnerabilidade.
Mais do que isso, percebi que essa era uma situação extrema, mas que nos meus 12 anos de vida corporativa, em diferentes empresas, eu vi a mesma dinâmica relacional se estabelecer nas mais diversas situações rotineiras.
O fato é que de alguma maneira as organizações nos forçam a vestir mascaras para nos encaixarmos no que é profissionalmente aceitável.
Nos acostumamos com isso e diariamente deixamos a maior parte de quem somos do lado de fora do trabalho. Muitas vezes, acabamos nos perdendo de nós e nos confundindo com as máscaras de tanto usá-las.
Você já deixou de posicionar os seus valores por medo de ser demitido? Você já deixou de expressar suas emoções para não te acharem fraco? Você já teve que vender algo que você não acredita? Ou já deixou de pedir ajuda por medo de te acharem incompetente?
Eu já, e acredito que é essa dinâmica de relação caraterizada pela falta de diálogo aberto, de transparência, e de espaço para expressão autêntica e vulnerável que muitas vezes abre espaço e potencializa o acontecimento de situações críticas, como a que narrei.
Para mim, o modelo que predomina hoje nas organizações nos leva a uma tremenda incoerência.
Se a busca de todo ser humano na vida é por plenitude e inteireza, como podemos alcança-los se passamos um terço de nossas vidas em um ambiente que nos impede de sermos inteiros?
Quando nos levamos por inteiro para o trabalho, também levamos toda nossa criatividade, presença e foco. E o trabalho passa a ser um espaço que contribui para nossa busca essencial por totalidade e sentido, nutrindo nossa essência mais profunda.
Eu acredito que esse é um movimento que acontece de dentro para fora, partindo das pessoas dentro das organizações que despertam para a busca de uma vida de autenticidade e propósito.
É por isso que na cuidadoria, nos cuidamos simultaneamente dos indivíduos e das organizações.
Cuidamos dos indivíduos para que lembrem como entrar em contato e praticar a vulnerabilidade, a presença e a comunicação autêntica.
Cuidamos das organizações para que cultivem práticas, cultura e dinâmicas relacionais que apoiem e suportem suas pessoas na busca pela integralidade como ser humano.