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As dimensões individual e coletiva do propósito

Por: Patrizia Bittencourt

“Tudo tem um propósito. Até as máquinas! Os relógios dizem as horas, os trens nos levam a algum lugar, elas fazem o que deveriam, como Monsieur Labisse. Talvez por isso as máquinas quebradas me deixam tão triste. Elas não fazem o que deveriam. Talvez seja igual com as pessoas. Se você perde o seu propósito, é como estar quebrado. As máquinas não vêm com peças a mais. Elas têm a quantidade exata que precisam. Então eu pensei se o mundo fosse uma grande máquina, eu não podia ser uma peça extra, eu tinha que estar aqui por alguma razão. Isso significa que você está aqui por uma razão.”

Trecho do filme "A invenção de Hugo Cabret", 2011

O que é propósito?

 

Propósito não é só uma palavra bonita. Tem uma interpretação profunda.

A minha intenção aqui é propor a seguinte reflexão: olhar sobre o propósito por duas lentes simultaneamente, a dimensão individual e a dimensão coletiva do propósito.

Chegar ao propósito faz parte de um processo de autoconhecimento no individual e de um processo de construção coletiva de sentido, no coletivo.

Há sempre uma tensão de forças opostas, negativas e positivas, entre a nossa dimensão individual e coletiva. O recheio disso é a nossa consciência. Essa dualidade faz parte de nós, as dimensões se misturam nos nossos sentimentos e pensamentos, e nem sempre é evidente ter clareza sobre isso.

Como integrar? O propósito pode ser uma via de resposta para isso.

Integrar as duas dimensões vem do aprendizado sobre si mesmo, vem do aprendizado coletivo, da singularidade construída individualmente e da singularidade construída em conjunto quando um grupo de pessoas se propõe a dar energia a algo maior do que cada uma e algo maior do que o próprio grupo. Algo imbuído de valor compartilhado.

A primeira frase do livro “21 lições para o século 21” de Yuval Harari é a seguinte: “Num mundo inundado de informações irrelevantes, clareza é poder.” De fato.

Propósito está associado a uma clareza. Clareza e espírito diante de si mesmo, diante da vida ou diante de algo que coletivamente queremos entregar ao mundo.

Dentre tantos sentidos, qual o sentido?

Clareza de que esse propósito não precisa ser uma descoberta: “Heureca!” “Achei!” Mas que venha de abandonar um pouco essa identificação com ser reconhecido, ter sucesso, ou atender a expectativas externas a si mesmo. Desapegar e expressar mais o que faz de fato sentido internamente, ou seja, do que é seu de forma essencial. E na hora de falar, que essa fala venha do coração.

Essa clareza vem com um conhecimento de si mesmo. Vejo o autoconhecimento como uma certa postura elegantemente humilde diante da vida, diante das nossas potências, limitações, crenças... Sabendo que tem coisas que podemos controlar e outras que não podemos controlar. Ou melhor: domínio é diferente de controle. Domínio vem do “seu” lugar, é o domínio de confiar, ter uma confiança de si e ter uma consciência do outro. O outro é diferente e deve ser diferente para que eu seja eu. Se quero que o outro se adeque, eu deixo de ser eu mesmo. Ao dominar, estamos falando desde as nossas próprias emoções e pensamentos para perceber e responder em relação aos acontecimentos, às sincronicidades, à força e à inteligência da Vida.

Cada um de nós tem uma essência genuína. Acredito que, na verdade, essa essência não é apenas nossa, mas que somos um canal para que o nosso potencial se exerça através de nós em projetos, um trabalho, uma missão, uma vontade, um serviço, um motivo, uma motivação maior do que nós mesmos para seguir.

Você cuida de quê?

Então, estar a serviço de quê?

Aqui na cuidadoria a gente acredita que “estar” no mundo pode ser expresso por uma resposta a uma pergunta: Você cuida de quê? Porque quando a gente expressa sobre o que cuidamos, tudo toma o seu devido lugar, a nossa intenção fica clara, o sentido das nossas atitudes fica claro, o propósito pode se revelar.

Uma boa maneira de explorar o propósito é descobrir: O que me faz vibrar? O que me motiva a dar um passo seguinte?

Como junto a minha experiência de antes eu a expresso hoje no mundo? Qual é a minha contribuição?

Seja qual for o contexto, o que me faz ampliar o olhar sobre mim mesma até aqui? O que me fez chegar até aqui? O que aprendi?

E tendo clareza disso, o que mais posso querer ampliar sobre mim mesma? Como contribuo?

O potencial humano é ilimitado para o universo, mas pode ser limitado por nós mesmos no nosso dia a dia quando deixamos de acreditar nele. Não fomos ensinados a problematizar sobre nós mesmos e sobre as nossas emoções.

Há muitas formas para buscar o cuidar. Cada pessoa descobre experimentando por meio do autoconhecimento, de como criar pensamento crítico, aguçar a curiosidade sobre si mesmo, desvendar-se. Seja com uma caminhada reflexiva, (os banhos de floresta e as trilhas na montanha, por exemplo), a meditação, um bom livro sobre algo que nos inspire, psicoterapia, terapias alternativas, conversas significativas, uma viagem... Enfim, tudo vale a pena quando é intencionado, quando a intenção é autoconhecimento. Fazer perguntas e construir respostas sobre si mesmo, quer beleza maior do que isso? Quer mergulho mais significativo do que esse?

Esse propósito significa ancorar nas nossas próprias raízes com um olhar no futuro, não podemos jogar fora o que foi construído. É nosso papel na vida transmutá-lo, fazê-lo evoluir. Conhecendo-se mais, é possível contribuir, apoiar os outros, dar o seu melhor e servir.

OPTE.h Observatório, Pesquisa Livre, Transdisciplinaridade, Experiência Humanística

Eu faço parte de um grupo de “pesquisa livre”. Não há uma definição ou conceito sobre a pesquisa livre, mas estamos falando da pesquisa da observação a partir das nossas experiências pela vida. Mulheres que se juntam para desenvolver a nossa “pedagogia dos courinhos”, ou seja, uma forma leve, bem humorada e experiencial de “aprender e ensinar o que ainda não sabe”, ou seja, a sentir na pele (“nos courinhos!”), através das nossas experiências, aquilo que nos ocorre. E fazer isso juntas.

Expressamos as nossas vulnerabilidades, nos apoiamos mutuamente, exploramos o pensamento científico sobre as coisas que nos interessam, e sobre os desejos e as curiosidades que nos atravessam. Estamos o tempo todo atentas e presentes para acolher uma à outra e ao que a força da Vida nos convida a perceber. E manifestamos isso através do aprendizado, na troca. Muitos aprendizados. Percebemos que é possível abrir espaço para sermos quem somos sem medo de sermos julgadas. E assim apoiamos umas às outras a ancorar cada uma o seu propósito e descobrirmos caminhos conjuntos que hoje se parece com uma escolha: OPTE.h: Observatório, Pesquisa livre, Transdisciplinaridade, Experiência Humanística. Estamos o tempo todo experimentando coisas novas. Saindo da teorização e indo para a experiência. Criando sentidos coletivos.

Qual o método? Conversas significativas, alguém traz um tema ou algum assunto, um desafio, diz como aquilo lhe atravessa, as outras acolhem, criam a partir do que a outra diz. A busca vai ao sentido de entender: o que me nutre? O que nos nutre? Onde vamos buscar o conhecimento? Como compartilhamos? É uma espécie elegante de terapia em grupo (rsrs). Sentidos construídos coletivamente a partir de singularidades individuais.

Como começar?

A infância conta muito sobre nós. Nas nossas mentorias, começamos com uma retrospectiva da vida com as pessoas. A nossa criança cresceu, mas continuamos sendo a mesma criança, e ela nos conta muito. A nossa memória de infância pode nos ajudar a encontrar um propósito hoje que vem lá na infância. Um desejo, uma curiosidade, um pensamento, um aprendizado, uma dor ou uma causa defendida na juventude pode sim nos ajudar a ressignificar a vida. E em seguida, olhamos para os valores. No que acredito? Por que acredito no que eu acredito?

Olhar para os nossos valores, dar narrativa a eles e expressá-los também é importante. Cheguei a três principais valores que me guiam: Liberdade, Justiça, Aprendizado. Parecem etéreos e grandes demais, mas só eu tenho intimamente as razões que me fazem tê-los como valores fortes.

É importante abrir espaço para descobrir o propósito. Dar narrativa ao propósito.

Dar narrativa, expressar o nosso propósito é importante para que o outro receba, e isso reverbera, abre a percepção.

Nesse momento de isolamento social em função da pandemia, fomos forçados a irmos para casa, a voltarmos para casa. Isso não tem precedente na nossa geração. Fomos forçados a pensar sobre o propósito, estamos dando passos mais largos nessa direção. Vivemos mais intensamente e as relações foram intensificadas, primeiro consigo mesmo, e depois com os outros. Não é a toa que pesquisas mostram mudanças de valores individuais, mudanças nas preocupações das pessoas. Tudo isso tem um efeito que a gente ainda não consegue prever, eu acredito que tem a ver com uma maior clareza , no sentido geral, em relação ao propósito!

Fomos convidados a olhar para como a gente se expressa no mundo, afinar a escuta de si mesmo e buscar uma coerência essencial para expressar isso no mundo.

Propósito Evolutivo

Há de se confiar na construção coletiva do propósito. Eu acredito na aprendizagem como modo de vida e como a grande força das organizações. Elas são o que são porque nos aprendemos, e as organizações são um grande repositório de aprendizados únicos que só elas tem.

Há um intercurso que se estabelece na interação entre as pessoas e o resultado disso é o aprendizado. Propósito vem da consciência de que há esse intercurso, algo que atravessa a organização como um todo e que faz sentido coletivo.

Propósito evolutivo vem dos três grandes pilares das organizações evolutivas, as organizações “Teal”, descrita magistralmente por Frederic Laloux, no guia “Reinventando as Organizações”: autogestão, integralidade e propósito evolutivo. Quando se tem propósito coletivo e compartilhado, as pessoas ganham mais autonomia, as estruturas ganham um papel essencial no apoio ao propósito e não o contrário. O lucro se torna consequência, a inovação vem das bordas, pois as pessoas se sentem capazes de iniciar mudanças agindo como sensores da organização, percebendo o seu ambiente, e respondendo ao contexto, podendo alertar o sistema da necessidade de mudança. Perceber, responder e confiar!

Nas nossas consultorias, o propósito evolutivo começa em olhar para as pessoas. E a liderança tem um papel fundamental nesse processo, não a liderança controladora, mas a liderança facilitadora, que se pergunta constante e honestamente sobre como gerar a energia do propósito entre as pessoas.

Por que as empresas tentam separar o pessoal do profissional?

As perguntas e os paradoxos nesse livro são incríveis! E há um paradoxo que nos ajuda a entender a relação entre integralidade e propósito evolutivo que é o seguinte:

“Por um lado, nos convidam a dissociar alma da função. Quem somos do que fazemos. Por outro, isso nos permite preencher nosso papel com mais da nossa verdadeira identidade.”(p.179-180)

Essa descoberta começa individualmente, seja pelo CEO, seja por apenas um dos funcionários. Pode vir de onde vier. Descobrir o propósito de uma organização e vislumbrar um senso de direção próprio é um processo coletivo. Como diz Laloux, “em vez de tentar prever e controlar o futuro, os membros dessa organização são convidados a escutar e a compreender o que a organização quer se tornar e a qual propósito ela quer servir.”

E isso evolui, não é estático. Evolui, porque é um caminho, percebendo as mudanças e respondendo a elas, sem afobação.

É evolutivo porque estamos aprendendo a confiar que as pessoas irão caminhar. Laloux faz uma provocação, no início do livro que é, para mim, primordial para trazer o espírito de todo o guia: “e se pudéssemos criar estruturas e práticas organizacionais que não precisassem de empoderamento porque, pelo desenho da organização, todos são dotados de poder e ninguém é impotente? E transcendem o antigo problema da desigualdade de poder por meio de estruturas e práticas em que ninguém tem poder sobre ninguém e paradoxalmente, a organização como um todo acaba sendo consideravelmente mais poderosa.” Esse é o primeiro avanço as organizações teal: elas que já estão operando num outro nível de consciência, as pessoas deixam de ser reconhecidas como peças de uma máquina, e passam a ser consideradas como parte do sistema. Isso só é possível uma vez que as pessoas estejam imbuídas de um propósito evolutivo.

E aqui a frase em epígrafe vem trazer a beleza dessa dualidade: até uma máquina tem um propósito!

Confiar e colaborar

Nas organizações, as pessoas colaboram naturalmente quando são convidadas a colaborar, se elas são estimuladas, o papel da liderança é importante aqui. Colaboram se são incluídas, se conhecem seus papéis, se há um propósito claro, compartilhado. Isso é totalmente diferente de quando fazemos as coisas no automático, sem questionar sobre o porquê do fazer o que faz. Por outro lado, há um sofrimento, em geral, no mundo corporativo, pois há muitas pessoas que trabalham se questionando sobre o que faz, por que faz como faz, sem ver sentido, necessidade, propósito para o que está fazendo, não se sente parte, não se sente útil, não vê causa.

Ou, seja, nos sentimos parte quando somos reconhecidos como pessoas que sentem, que pensam. Eu passei por isso. O que você acha que acontece quando uma pessoa ouve que ela não está ali para pensar? O que você acha que acontece com uma pessoa quando ela é reconhecida com tudo o que ela é, e com o que ela é capaz de entregar, com as suas habilidades, com a sua capacidade de dar o seu melhor, com a sua vontade de crescer, de se desenvolver? Vê a diferença? Isso está ficando cada vez mais claro para a gestão. São dois caminhos e uma escolha para a nova gestão: ou seguir explorando a capacidade técnica da pessoa e matando todo o recheio que ela pode oferecer ou buscando alternativas para que as pessoas façam parte, deem o seu melhor para ajudar a descobrir o propósito, o caminho da organização.

Agora está ficando mais claro para onde essas escolhas estão apontando e os resultados que decorrem de cada uma dessas escolhas.

Confiar e colaborar são o único caminho em um mundo complexo, não há mais dúvida disso. E colaboração também não é só outra palavra bonita, mas atitude necessária. Ainda que não haja um caminho direto para colaborar, é um processo que põe no lugar os três pilares, é o amalgama dos três pilares: autogestão, integralidade e propósito evolutivo.

E o meu Propósito?

No meu caso, demorei a ter clareza. E percebo que também não é estático, mas já consigo dar clareza e narrativa. E penso hoje que ele veio de um lugar de “Hei, eu não quero participar mais disso, não faz sentido para mim”. Veio de um lugar de reflexão sobre quais os sistemas que eu quero, de fato, participar.

E cheguei a algo que, certamente, vai mudando ao longo da vida: conectar pessoas e organizações a visões transformadoras da sociedade e apoiá-las a criarem com as suas próprias redes.

Agradeço e faço votos que você, que parou para ler esse texto, encontre nele uma nova inspiração sobre a clareza para a sua intenção, o sentido que é importante para você e o seu propósito individual. E, tendo tido mais clareza, que possa apoiar outras pessoas a fazê-lo também.

Patrizia Bittencourt