Fazia tempo que não escrevia. De alguma forma, toda vez que começava a trazer uma ideia para o papel, algo estava travando… não me preocupei em saber o que era, mas estava ali.
Por um outro lado, esse ano de 2020 na @cuidadoria foi (tem sido) digno de muitos e muitos textos, vídeos e histórias! Foi um ano de aprendizado prático dessa convivência com a incerteza e com a mente que traz o medo do desconhecido, da escassez, do não saber, misturada com o maravilhamento por todas as portas que se abriram e estão se abrindo, por toda a abundância, pela realização de desejos e sonhos num estalar de dedos, por decisões que mais pareceram sopradas nos nossos ouvidos do que pensadas e planejadas.
E é disso que quero falar. Em termos mais conceituais, o assunto é o Propósito Evolutivo. Segundo Frederic Laloux, um dos autores que mais inspira e embasa o trabalho da cuidadoria, o propósito evolutivo tem a ver com a capacidade de perceber e responder ao que o mundo nos pede, como indivíduos, como organizações e sociedade. Não, eu não grifei “perceber e responder” à toa. Essas duas palavras contêm um universo inteiro. Contêm formas de agir que desafiam raízes profundas de nosso ser individual e coletivo: raízes na forma de crenças, paradigmas, hábitos e modelos de gestão calcados em uma visão de que somos separados do todo, do mundo, da natureza, das outras pessoas e que o que está externo à organização faz parte de um “público-alvo”, de objetos sobre os quais nossos businesses atuam, impactam, influenciam...
Perceber e responder invalida descaradamente nosso desejo constante por segurança e estabilidade, coloca diante de nós a grande mentira que contamos quando tentamos criar e sustentar organizações e estilos de vida com a expectativa de que as coisas sairão exatamente como a gente quer ou planeja. Muitas outras coisas caem por terra quando começamos a ver que o que o mundo complexo vem pedindo de nós é algo novo, desconhecido, não imaginado, um novo jeito de funcionar, algo que está emergindo e que não vem com manual de instruções ou tutorial.
Há alguns dias, fui convidada para uma roda de conversa sobre o tema “Reinventando as Organizações” para um grupo de consultores. Não era uma palestra ou um webinar, mas uma conversa. Eu não havia preparado uma apresentação ou conteúdo, mas genuinamente preparei meus ouvidos e a disponibilidade para compartilhar.
À medida em que fui conhecendo as pessoas, dúvidas e curiosidades sobre o assunto, olhando nos olhos e sentindo o campo daquele grupo, nasceu algo para compartilhar, um recorte sobre “Reinventando as Organizações”. Houve ali um movimento de perceber e responder. E emergiu uma fala que eu nunca tinha feito, mas que trazia um viés de significado de um lugar interno, profundo e que vinha sendo trabalhado silenciosamente por anos e que ali se transformou em palavras.
Como pode o propósito evolutivo acontecer na prática dentro das organizações? Estamos sempre pensando em como transformar as coisas em métodos, em práticas, em ferramentas. Sim, isso é importante, tem seu lugar e sua hora, mas a cada dia fica mais claro para mim que, para além das ferramentas, o que realmente os líderes e profissionais precisam é trabalhar uma capacidade que vou chamar aqui de relaxamento. Um cultivo de um lugar interno muito pouco explorado em nossa sociedade e em um mundo do trabalho em que somos sempre estimulados a performar, produzir mais, entregar resultados.
Relaxamento não quer dizer preguiça, inércia, imobilidade, mas um estado em que abro espaço para o novo: o novo que emerge de dentro e o novo que chega de fora. Um estado tal que nos coloca disponíveis para realmente perceber, com menos filtros de nossas próprias mentes, ouvindo com mais profundidade, olhando para as coisas simplesmente como elas são, como elas se mostram diante de nós.
Isso não vem acontecendo facilmente, não é mesmo? Como é possível estar aberto e relaxado com tanta informação chegando ao mesmo tempo, com tantos pedidos urgentes, com essa tentativa insana de tentarmos fazer algo bom misturada com a necessidade de atendermos milhares de expectativas, etiquetas, hierarquias, transitando em culturas organizacionais com tantos acordos tácitos que nos levam a um estado constante de alerta e tensão.
Pois é, essa é uma baita prática, pessoal. Mais do que isso, esse estado de relaxamento interno abre o espaço para uma melhor percepção dos acontecimentos é um dos pilares, um dos fundamentos para transitarmos no mundo de hoje, para criarmos organizações que sejam ao mesmo tempo resilientes e flexíveis, para liderar e atuar de uma maneira participativa no sistema e não nos colocando como um influenciador, alguém de fora que vai causar um impacto no sistema. Precisamos nos entender como parte.
Gosto de trazer uma imagem, que é a seguinte: imagine um furacão. Ele representa o mundo em que vivemos, com toda a sua imprevisibilidade, força, velocidade. Agora, imagine que você está exatamente no centro desse furacão. Desse lugar no centro, você consegue enxergar o furacão por vários ângulos, entender que direção ele está tomando, perceber algum padrão por trás da visão aparentemente insana desse fenômeno. Agora, transporte-se para o furacão da sua vida diária, dentro ou fora das organizações. Onde você está? No centro do furacão ou sendo arrastado por ele, sem saber se daqui a alguns segundos uma árvore vai bater na sua cabeça ou se você vai ser arremessado a quilômetros de distância.
Nossa mente pode ser o furacão, mas ela também pode ser o centro.
Pode parecer contraditório, mas pense em quantas decisões você toma diariamente em sua vida? Se você for um líder em uma organização, pense também em quantas decisões diárias estão em suas mãos e que reverberam em muitas e muitas pessoas e outras decisões.
Suas decisões estão vindo de perceber e responder ou de perceber e reagir? Veja que tem uma grande diferença.
Quando reagimos a algo, em geral estamos falando de uma resposta automática ou quase automática. Mas em que se baseia uma resposta automática a algo? Com certeza não é no novo.
Quando reagimos voltamos ao que já sabemos, ao já aprendido e praticado, ao velho. Falamos tanto de inovar, mas com tanta pressão, sem relaxamento, sem espaço, a inovação provavelmente vai ser só na embalagem (pobres marketeiros). Reagir envolve olhar para fora e não para dentro, quem reage não tem tempo nem o estado interno para novas sinapses, para sacar o novo que quer nascer. Quem reage está se sentindo sob ameaça… a ameaça de mais uma reunião urgente, de mais uma cobrança, de mais um relatório de resultados pra apresentar pra diretoria… a mesma diretoria que exige inovação.
Responder tem a ver com ser responsivo, com receber o que chega, deixar entrar, processar internamente, colocar-se disponível, abrir espaço para que outras partes do sistema também vejam aquilo que chega com novas visões, criar novas sinapses… e então responder. E a resposta pode ser uma solução, uma decisão ou um novo produto, mas perceba que não é só isso. O que nasce a partir desse estado de relaxamento vem agregado de propósito. Propósito real colocado em prática.
Você pode me dizer que perceber e responder leva mais tempo… isso depende, mas mesmo que leve, você quer mesmo continuar vivendo com o nível de urgência em que vive hoje?! Será que não tem um novo jeito de fazer as coisas querendo emergir, mais fluido, mais leve, mais saudável, mais profundo, mais perceptivo e responsivo?
Fico por aqui. Talvez já tenha falado demais… Que tal termos um tempo para que esse assunto reverbere aí, que você possa relaxar, quem sabe perceber algo diferente e novo sobre você… o mundo novo não tem manual de instruções, mas ele está nascendo agora, em algum lugar dentro de você. É só perceber!
Um grande abraço e fico disponível para conversar!
thianne@cuidadoria.com