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Uma síntese do livro Sociedade do Cansaço

Por Gabriela Inácio

O pequeno livro do autor sul-coreano Byung Chul Han retrata em 128 páginas o que seria a Sociedade do Cansaço, que vivemos no século XXI. Apesar de pequeno, o livro carrega uma robustez filosófica, que por vezes é de difícil compreensão, apresentando sua ideia central em debate com pensadores como Foucault, Hanna Arendt, Freud e outros.

A intenção com essa síntese é facilitar a compreensão das principais ideias descritas no livro, junto de algumas pitadas de interferências pessoais, que podem contribuir para a difusão desse pensamento, que na minha visão, é tão necessário e urgente.

Se você se sente cansado, ou sente que o cansaço é um grande tema dos tempos que vivemos, essa singela síntese é pra você. É uma síntese informal sobre o livro, não espere nenhum tipo de rigor acadêmico.

SOCIEDADE DISCIPLINAR E SOCIEDADE DO DESEMPENHO

Para iniciar, devemos colocar à luz a separação que o autor faz do que seria a sociedade disciplinar e a sociedade do desempenho. A sociedade disciplinar foi descrita por Focault como uma sociedade pautada na repressão das nossas vontades e desejos, na coação e no não-ter-direito. Nessa sociedade, poucas escolhas foram permitidas ao sujeito, o “não” é a resposta mais provável para quem busca se realizar de alguma maneira que não a tradicional. Essa sociedade, segundo Han, descreve bem o século XX. De forma geral é a sociedade onde se consolidaram os hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas. É a sociedade da ordem, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

O autor defende que, nos últimos anos, com as mudanças tecnológicas do sistema capitalista, vivenciamos uma mudança paradigmática, e a sociedade disciplinar já não opera de forma totalitária, entrando em cena a sociedade do desempenho. O sujeito disciplinar, pautado ao que o autor chama de uma negatividade (um não poder fazer), é abandonado aos poucos, surgindo um novo sujeito, o da positividade, o sujeito que tudo pode, que é livre para empreender e ser dono dos seus próprios projetos.

“No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.”

A sociedade do desempenho é onde se consolidam as academias, fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. Essa sociedade pode ser percebida no lema Yes, we can.

(Sim, nós podemos) — slogan que ficou popularizado na campanha presidencial de Barack Obama.

(Sim, nós podemos) — slogan que ficou popularizado na campanha presidencial de Barack Obama.

Mas adiciono aqui outros elementos, a positividade na sociedade ocidental, pode ser percebida também no slogan Just do it da Nike, e se você é uma criança brasileira nascida na década de 80/90, com certeza cresceu ao som de “tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar”.

Bem-vindo à sociedade do desempenho, você provavelmente já deve ter ouvido alguma dessas frases:

“Enquanto os outros dormem, você trabalha”

“Treine sua mente para ver o lado bom de tudo”

“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”

“O não você já tem, busque o sim”

LIBERDADE PARADOXAL E ADOECIMENTO MENTAL

Osujeito do desempenho busca a liberdade e busca alcançar o prazer através do trabalho. É um empreendedor de si mesmo. Esse processo de emancipação e libertação, no entanto, é acompanhado de novas formas de coação. Como já não há uma relação direta com o outro, acontece uma crise de gratificação. Afinal, quem é o responsável por dizer que você completou uma tarefa com excelência? Nessa jornada empreendedora e solitária, o sentimento de ter atingido uma meta jamais se instaura, jamais atinge o ponto de repouso e de gratificação. O sujeito vive constantemente com o sentimento de carência e culpa. Inicia uma competição consigo mesmo, produzindo cada vez mais, até sucumbir e sofrer um colapso, o qual temos chamado de Síndrome de Burnout.

“A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever.”

Essas são doenças típicas de uma sociedade da positividade. Pois ao acreditar que tudo é possível, a sociedade do desempenho produz pessoas que não são capazes de cumprirem com essa alta expectativa ilusória, e que são acometidas pelo sentimento de tristeza profunda e fracasso. A depressão, segundo o autor, é a expressão patológica do fracasso do homem moderno em buscar ser ele mesmo, de forma frenética. Esse sujeito é vítima e agressor ao mesmo tempo, explorador e explorado.

Pertence também a depressão a carência de vínculos, característica da sociedade do desempenho que vive uma fragmentação social ao intensificar os valores de individualismo e competição.

DE ATENÇÃO PLENA PARA HIPERTENSÃO — UM RETROCESSO

Aprincipal característica da evolução do ser humano foi desenvolver a capacidade de atenção plena, o homo sapiens, já há milhares de anos consegue mergulhar contemplativamente em uma só tarefa sem qualquer receio ou temor de ser atacado. O animal selvagem, pelo contrário, não desenvolveu essa capacidade, pois ele precisa dividir a sua atenção em diversas atividades para ao se alimentar, não acabar ele mesmo sendo comido.

A multitarefa é uma atenção ampla, porém rasa. Trata-se na verdade de um retrocesso evolutivo, que se assemelha à atenção do animal selvagem. Temos muito a perder com a perda da capacidade de uma atenção mais profunda e contemplativa, pois é a partir dessa forma de atenção que o indivíduo consegue, de fato, refletir e criar coisas novas. O que estamos alimentando é uma hiperatenção, ou seja, uma atenção dispersa que se caracteriza por rápidas mudanças de foco entre diversas atividades, fontes de informação e processos.

O indivíduo multitarefa também tem uma tolerância bem pequena ao tédio, não tolera estar entediado, logo procura alguma atividade estimulante para cessar essa sensação, que na minha percepção, geralmente envolve acessar algum tipo de tela (celular, computador, vídeo-game, TV). Imagine um adolescente num dia de tempestade, a energia elétrica não está funcionando, o celular está sem bateria, os olhos virados, mão no queixo, a expressão “ai que tédio, não tem nada pra fazer”. Isso mesmo, tenho certeza que você captou bem a imagem, o tédio tem se tornado insuportável para as pessoas. Porém, pare um minuto pra pensar, esse sentimento provavelmente era bastante comum nas sociedades passadas, que viviam principalmente no meio rural. Provavelmente o seu avô e sua avó sentiram tédio em muitos momentos de sua vida e simplesmente deixaram ele passar.

Não tolerar o tédio é, em última instância, não tolerar o descanso profundo, não tolerar a contemplação e a observação. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas. Como não damos espaço a esse descanso, mergulhamos em uma vida hiperativa e hiperneurótica, onde a ansiedade, a irritabilidade e as noites mal dormidas operam.

UMA VIDA ONDE TUDO É TRANSITÓRIO

Nessa sociedade do desempenho nada promete durar muito tempo, nem o modelo mais atualizado de um celular, nem a atualização do aplicativo, nem o seu cargo e nem as relações. Jamais a vida foi tão transitória como hoje. Estamos sempre em trânsito, indo para algum lugar, saindo de uma relação, iniciando um novo projeto.

Segundo Freud, a formação da personalidade e do caráter se dá pelo fenômeno da negatividade, ou seja, pela censura, é pelo não-poder-fazer que a psique se forma. Pense, você é alguma coisa exatamente porque não é infinitas outras coisas, essas infinitas coisas que não são você, são também o que possibilitam você ser o que é. Porém, numa sociedade transitória o indivíduo é estimulado a ser flexível, a acolher toda e qualquer forma, toda e qualquer função. Há uma carência de ser, uma sensação parecida com “se eu sou tudo, eu não sou nada”.

Esse sujeito que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é capaz de estabelecer ligações intensas, pois emprega grande parte de sua energia da libido para si mesmo.

A VIDA CONTEMPLATIVA COMO FORÇA PARA O NOVO

Oautor sinaliza com muita ênfase a importância de um novo olhar, de estimular uma nova “pedagogia de ver”, que seria um olhar contemplativo para as coisas. Isso significa habituar os olhos ao descanso, à paciência, a um olhar demorado e lento. Precisamos aprender a não reagir imediatamente a um estímulo.

A quantidade de atividades que se realiza hoje não nos torna mais livres, pelo contrário, nos coloca em um dinamismo que não tem parada, e ao não ter parada não consegue propor novos caminhos. O esforço exagerado de maximizar tudo — o lucro, o tempo, as relações — afasta a energia da negatividade, que é importante para interromper um processo e começar outro. Essa energia positiva só admite continuar fazendo, continuar andando, e essa ação hiperativa é na verdade, uma forma altamente passiva de se fazer as coisas, que não admite nenhuma ação livre.

“Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo.” — Nietzsche

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta obra, o autor é tímido para se debruçar nos desdobramentos das possíveis respostas para a sociedade do cansaço. Porém, algumas sinalizações de caminhos já podem ser percebidas quando este cita a importância do resgate da vida contemplativa, ao citar a efemeridade dos vínculos afetivos atuais e ao final, ao fazer uma constatação de que esse tempo é desprovido de celebração e da festividade divina. As festas que existem hoje, segundo o autor, não seriam no sentido verdadeiro de festa, que estaria relacionada, em essência, ao estabelecimento de uma relação com o divino.

O autor também é um grande crítico do sistema econômico neoliberal, da sociedade de consumo e da forma como o progresso tecnológico tem avançado e mudado as estruturas sociais.

Precisamos de uma nova forma de vida, uma nova narrativa, onde possa surgir uma nova época, um outro tempo vital, uma forma de vida que nos resgate da estagnação espasmódica.

E você? O que pensa sobre esse tema? Como essas percepções trazidas pelo autor te atravessam? Quem é você na sociedade do cansaço?

Na comunidade cuidadoria, realizamos um ciclo de 4 encontros de conversas e aprofundamento sobre esse tema. As gravações dos encontros estão disponíveis para assinantes.

Acredito que outras obras do autor podem ajudar a elucidar melhor alguns pontos levantados nessa obra, cito aqui algumas delas: Psicopolítica, Sociedade da Transparência, O Desaparecimento dos Rituais, Topologia da Violência, Salvação do Belo e, Favor Fechar os Olhos: Em Busca de Um Outro Tempo.